O furto de energia elétrica, popularmente conhecido como “gato”, mas no jargão do setor chamado de “perda não técnica”, não é um problema novo no Brasil. O ato de desviar intencionalmente energia elétrica é considerado crime (art. 155 do Código Penal), cuja pena pode chegar de 1 a 4 anos de prisão, além de multa. No entanto, um levantamento da Associação Brasileira de Distribuidoras de Energia Elétrica (Abradee), com dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), mostra que a situação tem fugido do controle das distribuidoras e causado grandes prejuízos às empresas e aos demais consumidores. No ano de 2023, a quantidade de energia furtada bateu recorde, superando a garantia física de geração da usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, a segunda maior do país. O prejuízo, estimado em mais de 10 bilhões de reais, é compartilhado entre distribuidoras e consumidores. As distribuidoras, porém, alertam que o problema não é técnico, mas sim social e de segurança pública.
O levantamento feito pela Abradee mostrou que, em 2023, a quantidade de energia furtada chegou a 40,8 TWh, quase 20% superior aos 34,2 TWh furtados em 2022, e também acima do registrado durante a pandemia de COVID-19, em 2020. Esse volume, segundo a entidade, seria suficiente para abastecer os clientes residenciais dos estados do Amapá, Acre, Roraima, Tocantins, Sergipe, Alagoas, Rondônia, Piauí, Mato Grosso do Sul, Amazonas, Paraíba, Rio Grande do Norte, Distrito Federal e Espírito Santo juntos. Nos últimos 15 anos, houve alta de 73,6% na quantidade de energia furtada, acumulando mais de 500 TWh desde 2008. Para incentivar as distribuidoras a atuar contra os furtos de energia, a legislação brasileira estabelece um limite máximo de perdas não técnicas que podem ser repassadas aos demais consumidores. Esse limite é definido pela ANEEL e atua como meta regulatória para as distribuidoras. Ele varia de acordo com o estado e área de concessão, sendo redefinido a cada 4 ou 5 anos durante as revisões tarifárias periódicas (RTP). Considerando-se o Brasil como um todo, em 2023 foi furtado o equivalente a 16,9% de toda a energia efetivamente fornecida, enquanto a meta era 10,6%.
O panorama geral no país é bastante heterogêneo. A região Sudeste, onde é consumida a maior parte da energia, liderou em volume de energia desviada, com 20 TWh. Em termos percentuais, entretanto, a região Norte se destaca. É o caso do Amazonas, onde a situação é alarmante: a energia furtada supera a energia faturada pela distribuidora local, a Amazonas Energia. No estado, a relação entre energia furtada e energia faturada atingiu impressionantes 117,8%, ou seja, para cada 100 kWh faturados pela distribuidora, outros 117,8 kWh foram desviados. No ranking nacional, o estado é seguido pelo Amapá, onde essa relação fica em 67,4%, e depois pelo Rio de Janeiro, com a relação em 62%.
Em algumas concessões, como no caso do Rio de Janeiro, por exemplo, as perdas não técnicas têm ficado cada vez mais distantes da meta regulatória, com uma dificuldade extra para que as distribuidoras combatam esses furtos: os técnicos não conseguem acessar áreas onde falta a presença da polícia, como as dominadas pelo tráfico e por milícias. Em muitos casos, alertam especialistas, os moradores dessas comunidades continuam pagando pela eletricidade, mas para os traficantes e milicianos que controlam a região. A Enel Rio, responsável pela distribuição de energia em 66 municípios fluminenses, divulgou que, em 2023, registrou 150 mil “gatos” em sua rede, a maior parte em áreas consideradas de risco, onde, na média, 3 a cada 4 consumidores desviam energia. Segundo a companhia, de 2004 a 2023 houve um aumento de 540% no número de consumidores nessas áreas. A Light, concessionária responsável por 31 municípios, incluindo a capital fluminense, chegou a pedir recuperação judicial em 2023, com a viabilidade econômico-financeira de sua concessão severamente afetada pelos furtos.
Os “gatos” não trazem apenas prejuízos financeiros para distribuidoras e consumidores. Segundo alerta Helder Almeida, mestre em Engenharia de Energia, as conexões ilegais podem ocasionar oscilações na tensão da rede, que podem levar a sobrecargas e à queima de equipamentos, além do risco de eletrocussão ou incêndios, uma vez que essas ligações, na maioria das vezes, não são feitas seguindo normas de segurança. Segundo ele, há risco de morte tanto para quem faz a instalação ilegal quanto para os demais consumidores.
Com um problema tão heterogeneamente distribuído e complexo de ser abordado, não há uma solução simples que possa ser aplicada a todo o país. No Brasil, ainda é comum a mentalidade de que aquele vizinho que desvia energia é “esperto”, mas é preciso lembrar que, quando um vizinho faz um “gato”, quem paga pela energia que ele está consumindo são os outros consumidores. Segundo Marcos Madureira, Presidente da Abradee, “Precisamos ter cada vez menos impunidade; as pessoas precisam ser punidas e assumir responsabilidade pelos seus atos.” O consenso entre especialistas é que, para derrotar o problema dos furtos, será necessária a atuação conjunta das distribuidoras locais e do poder público, trazendo conscientização para a população e aplicando novas tecnologias para melhorar o monitoramento da rede e facilitar a identificação e autuação de quem comete esse tipo de irregularidade.
Publicado por
Pedro Luis Figueiredo
Partner & Investment Analyst at Santa Fé Investimentos