Inaugurado no Brasil no final da década de 1990 e ainda pouco conhecido pelo público geral, o Mercado Livre de Energia possibilita que indústrias e comércios contratem energia em momentos oportunos, tendo flexibilidade para escolher a empresa fornecedora de energia, negociar prazos e condições ou mesmo escolher a fonte que originou a energia contratada, e conta com descontos que podem passar dos 30% no preço da energia. Inicialmente reservado para grandes consumidores, o Mercado Livre de Energia passou por uma abertura gradual nos últimos 5 anos, culminando na abertura total do mercado para todos os consumidores ligados em alta tensão (denominado grupo A, no jargão técnico), ocorrida no dia 1º de janeiro de 2024.
A abertura desse mercado aos pequenos consumidores da alta tensão (com consumo inferior a 500 kW) vem gerando uma verdadeira “corrida pelo ouro” no setor, de maneira parecida ao que ocorreu com a abertura do mercado de telefonia. Empresas tradicionais do setor têm intensificado investimentos em relacionamento com o cliente e na criação de braços especializados em comercialização varejista (onde o consumidor não precisa estar registrado na Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE), como é o caso da Cemig, que recentemente anunciou ter ultrapassado a marca de 1000 unidades consumidoras atendidas e conta com estimados 15% do market share do Ambiente de Contratação Livre (ACL). Por outro lado, empresas externas ao setor têm buscado parceiros já estabelecidos no setor elétrico com vistas em uma fatia desse mercado em expansão, como é o caso da Joint Venture criada entre Vivo e Auren e a parceria firmada entre Itaú e Comerc Energia.
O potencial de expansão desse mercado é grande: segundo dados da CCEE, órgão que supervisiona o Mercado Livre de Energia, em outubro de 2023 existiam 36,3 mil unidades consumidoras registradas e estimadas 72 mil novas unidades consumidoras aptas a realizar a migração, sem contar consumidores que possuem alguma forma de Mini ou Micro Geração Distribuída (MMGD) como painéis solares, por exemplo. Já a Associação Brasileira de Comercializadores de Energia Elétrica (ABRACEEL) estima possíveis 165 mil novos consumidores, sem excluir aqueles com sistemas de MMGD. Dados da Agência Nacional da Energia Elétrica (ANEEL) mostravam que em meados de dezembro de 2023, mais de 12 mil unidades consumidoras já haviam iniciado o processo de migração a se completar em 2024.
A abertura do ACL para toda a alta tensão, no entanto, vem gerando alguma preocupação em agentes do setor. A grande oportunidade de crescimento do mercado tem atraído empresas muitas vezes com pouca experiência no tema (os chamados “aventureiros” no jargão do setor), e o aumento da concorrência pelos novos consumidores tem pressionado as margens das comercializadoras, que têm oferecido descontos cada vez maiores com o objetivo de fidelizar o cliente e ganhar escala.
Para tentar aumentar a resiliência do sistema, a CCEE endureceu as diretrizes para o Mercado Livre em 2024, como exigir que os pequenos consumidores estejam vinculados a uma comercializadora varejista que os representará, assim como exigir a apresentação de um Balanço Patrimonial Auditado e um Patrimônio Líquido mínimo superior a 10,6 milhões de reais para essas comercializadoras. O racional por trás dessas exigências é que as pequenas empresas que farão a migração a partir de 2024 são mais suscetíveis a instabilidades financeiras, e em caso de inadimplência, o agente comercializador terá capital para honrar compromissos sem maiores prejuízos ao sistema.
Ainda assim, especialistas alertam que os preços historicamente baixos da energia no Brasil atualmente permitem que as comercializadoras, em especial as “aventureiras”, ofereçam descontos percentualmente altos, mas absolutamente baixos, na busca por uma fatia do mercado, e que no caso de uma alta no preço da energia, muitas delas estarão descobertas e podem quebrar, o que seria o pior cenário possível para o setor. Além disso, segundo a Associação Nacional dos Consumidores de Energia (ANACE), ainda falta clareza jurídica e regulatória para alguns pontos, como por exemplo nas regras para desconto nas tarifas de uso dos sistemas de transmissão e distribuição (TUST e TUSD), oferecida para os consumidores que compram energia de algumas fontes geradoras renováveis, as chamadas fontes incentivadas.
Apesar de positiva para as pequenas empresas e para a economia, a abertura do Mercado Livre de Energia vem causando incômodo ao Governo Federal: desde dezembro, o Presidente Lula vem tecendo comentários ácidos sobre o ACL durante aparições públicas, e cobrou nominalmente o Ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, que trabalhasse para diminuir a disparidade das tarifas praticadas nos ambientes livre e regulado. O ministro também se referiu à abertura do mercado aos pequenos consumidores como “injusta”. Para o Governo, o Mercado Livre de Energia é parte importante da questão tarifária no país, que apesar de contar com preços de energia historicamente baixos, ainda apresenta uma tarifa salgada ao consumidor. Isso decorre do fato de a conta de energia não ser formada apenas pelo preço pago pela energia consumida, mas também pelos encargos setoriais, sendo o mais relevante, e diretamente afetado pelo mercado livre, a TUSD.
No Brasil, existe a chamada Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), um encargo do Setor Elétrico que tem como finalidade conceder descontos tarifários aos usuários de baixa renda; custear a geração de energia nos sistemas isolados por meio da Conta de Consumo de Combustíveis (CCC); garantir a modicidade tarifária; promover a competitividade do carvão mineral nacional entre outros. O orçamento da CDE é definido anualmente e os recursos são arrecadados por meio de quotas anuais fixadas pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), pagas pelos agentes que comercializam energia para o consumidor, por meio, principalmente, de encargo tarifário a ser incluído nas tarifas dos sistemas de distribuição e transmissão. Ou seja, a famigerada TUSD. Ocorre que, ao comprar energia de fontes incentivadas via ACL, os consumidores recebem descontos que podem variar de 50 a 100% da TUSD. Como a CDE tem orçamento fixo, sempre que um consumidor recebe desconto na TUSD, esse mesmo valor é repassado para todos os consumidores que não receberam desconto, sendo eles, em sua esmagadora maioria, consumidores do Ambiente Regulado. Quanto mais consumidores migrarem para o Mercado Livre, menos consumidores restarão no Mercado Cativo para ratear os encargos da CDE e maior será a tarifa cobrada do consumidor.
A questão tarifária e a abertura do Mercado Livre de Energia serão pontos de grande foco no Setor Elétrico no ano de 2024, com o Ministro Alexandre Silveira já tendo admitido em entrevista, no início do mês de janeiro, que o Governo “perdeu a mão” nas políticas públicas para o setor, e que o governo está estudando uma série de Medidas Provisórias (MP) que tratarão do tema. O Governo afirma que será rigoroso em proteger o consumidor cativo, mas não deu detalhes de como pretende fazer isso. Além disso, é importante ressaltar que, por conta do El Niño vivenciado em 2023 e que deve se estender até meados de 2024, o período chuvoso no Brasil foi negativamente afetado e os níveis dos reservatórios das hidrelétricas, sobretudo as da região Norte, caíram, o que já tem levado especialistas a projetar uma elevação gradual no preço da energia para os próximos anos. Somam-se a esses impasses a renovação das concessões de distribuição que devem ter início nesse ano; a discussão sobre os impactos das mudanças climáticas sobre as redes de distribuição após as tempestades na região Sul e o impasse com o Paraguai sobre a energia de Itaipu. Teremos um ano recheado de turbulências no setor elétrico. Mas isso já é assunto para um outro texto…
Publicado por
Pedro Luis Figueiredo
Partner & Investment Analyst at Santa Fé Investimentos