SANEAMENTO CASMURRO

Casmurro!

Adjetivo masculino que, nas palavras de Bento Santiago, narrador-personagem da obra prima de Machado de Assis, Dom Casmurro, significa “homem calado e metido consigo”. Uma rápida visita ao dicionário, no entanto, desmente o célebre personagem: Segundo o dicionário Aulete, casmurro significa “muito teimoso, carrancudo, retraído, triste”.

Na semana passada, a Câmara dos deputados aprovou, por 295 votos a 136, um PDL (Projeto de Decreto Legislativo) que susta parte dos decretos assinadas pelo Presidente, no início de abril, que alteram as regras do Marco do Saneamento, representando a primeira grande derrota do Governo no Congresso e abrindo um novo capítulo na questão do saneamento no Brasil. O tema agora segue para o Senado, onde deverá ser apreciado dentro de três semanas. Segundo noticiado pelo jornal Valor Econômico, o Governo já prepara uma Medida Provisória para retomar os trechos caso sofra um novo revés.

A questão do saneamento vem ocupando espaço nos noticiários já há algum tempo: Primeiro, mudanças nas atribuições dos ministérios e agência reguladora; em seguida, após meses de boatos e discussões entre a Casa Civil e o Ministério das Cidades, 4 decretos assinados pelo Presidente da República, no início de abril, alteraram algumas regras definidas no Marco Legal do Saneamento de 2020 (Lei 14.026), fato que gerou insatisfação entre parlamentares e entidades do setor.

Dentre as mudanças trazidas pelos decretos (agora no centro da disputa política entre Governo e Congresso), podemos citar a possibilidade que estatais incluam, no processo de comprovação de capacidade econômico-financeira, operações que hoje estão irregulares, sendo que, pelas regras estabelecidas no Marco Legal, tais contratos deveriam, necessariamente, passar por novo processo licitatório; além de estender o prazo para referida comprovação até o final deste ano, prazo este que havia se esgotado em março do ano passado. O ponto mais polêmico, no entanto, é a autorização para que estatais de saneamento forneçam serviços para regiões metropolitanas e aglomerados urbanos sem a necessidade de licitação, “brecha” explorada na Paraíba e que gerou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por parte da Abcon, associação que reúne empresas privadas do setor de água e esgoto.

Pouco depois da publicação dos decretos, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP – AL), avisou que colocaria em votação projetos para sustar os atos do Governo caso o Planalto não ajustasse às regras. Na avaliação do Broadcast+, a reação se deu pelo entendimento que os decretos desrespeitam o texto do Marco Legal aprovado pelo Congresso em 2020, e pela “segunda chance” dada às empresas públicas cujos contratos se encontram em situação irregular.

Lira ficou pessoalmente irritado com a situação, chegando a publicar em suas redes sociais que o Congresso estaria disposto a dialogar com o Governo, mas que não aceitaria “retrocessos”. Em uma tentativa de negociação, Lira retirou o projeto da pauta e escalou o Deputado Fernando Monteiro (PP – PE) para negociar alterações em alguns pontos chave com representantes dos ministérios. O Ministro das Cidades, Jader Filho, se mostrou aberto ao diálogo, mas o tema foi travado na Casa Civil. Fontes especulam que o Ministro Chefe da Casa Civil, Rui Costa (PT – BA), estaria especialmente interessado na possibilidade de utilizar a mesma estratégia da Paraíba para regularizar a prestação de serviços em Salvador, capital do estado baiano, onde Costa foi governador, de 2015 a 2023. Sem acordo, o vice-presidente da Câmara, Marcos Pereira (Republicanos), colocou o tema para votação sob orientação do alagoano.

A aprovação do PDL foi considerada a primeira grande derrota do Governo, além de ser um “recado” quanto ao tratamento dado aos parlamentares da base. Isso porque até deputados de partidos com cargos no primeiro escalão, que em teoria fazem parte da base governista, votaram com a oposição. MDB e União Brasil, com três ministérios cada, votaram em peso pela aprovação do PDL, enquanto 11 dos 14 deputados do PSB, partido do vice-presidente Geraldo Alckmin, também votaram pela aprovação. O resultado levanta dúvidas sobre o futuro do saneamento assim como sobre a capacidade do Governo de aprovar temas relevantes como a Reforma Tributária e o arcabouço fiscal.

As incertezas causadas por essa votação vão além do mérito da questão: segundo a Abcon, o importante é que a disputa se resolva logo para que o investimento seja retomado. As empresas privadas temem que a disputa possa se alongar ou ainda incluir temas que não constaram, originariamente, nos decretos. A área do Saneamento Básico, no Brasil, passa por um momento delicado em que o Marco Legal, aprovado em 2020, tenta criar as diretrizes sólidas necessárias para atrair investimentos privados a fim de alcançar a meta da universalização até 2033. As alterações feitas ao Marco menos de três anos após sua publicação, além da complicada disputa política que está envolvendo o tema, afastam investidores e colocam em cheque as metas de universalização.

É preciso entender que a incerteza é um sentimento poderoso. Como um câncer, ela consome o subconsciente e exaure a vontade. A dúvida de uma traição continua, mais de 120 anos depois, a ser um dos maiores mistérios da literatura brasileira. Capitu traiu ou não traiu? Tal dúvida levou Bentinho a definhar e tornar-se recluso e carrancudo. A votação do PDL e a disputa entre Governo e Congresso cria um cenário de medo e incerteza no empresariado. É como começar um jogo de futebol sem saber de que lado fica o gol. Nesse cenário, o investimento pára, à espera da definição das “regras do jogo”.

Enquanto isso, o Saneamento no Brasil vai ficando como Bentinho: casmurro, recluso e corroído por dúvidas; com as incertezas e disputas políticas afugentando investidores e travando projetos urgentes e necessários. E o povo brasileiro vai ficando como seu filho, Ezequiel: ostracizado, marginalizado e excluído por aquele que o deveria proteger. Ironicamente, no livro, Ezequiel morre de febre tifoide, doença cuja prevenção é o saneamento básico, destino que poderá ser compartilhado por muitos brasileiros caso a atual situação de incerteza perdure.

Publicado por

Pedro Luis Figueiredo

Partner & Investment Analyst at Santa Fé Investimentos